quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

POESIA: CORA CORALINA

Alguém já ouviu falar da poetisa Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas? Como poetisa é difícil, pois essa mulher de ouro, como escreveu certa vez Carlos Drummond de Andrade, assinava as suas poesias com o pseudônimo Cora Coralina.
 
Nasceu no final do século XIX e faleceu em 1985. Lá se vão 30 anos desde sua despedida física, porém viva mais do que nunca na sua obra. Assumida a lutar por um espaço praticamente restrito aos homens, criou em 1908 o jornal "A Rosa" com a colaboração de duas outras mulheres, para a divulgação de poesias de autoras femininas.
 
Em tributo à Cora Coralina e em sua memória, pois lá se vão 30 anos, transcrevo uma poesia em que ela própria se apresenta. Ela própria diz ao Brasil quem é Cora Coralina.
 
 
CORA CORALINA, QUEM É VOCÊ?       ( Cora Coralina)
 
Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.
 
Nasci numa rebaixa de serra
Entre serras e morros.
“Longe de todos os lugares”.
Numa cidade de onde levaram
o ouro e deixaram as pedras.
 
Junto a estas decorreram
a minha infância e adolescência.
 
Aos meus anseios respondiam
as escarpas agrestes.
E eu fechada dentro
da imensa serrania
que se azulava na distância
longínqua.
 
Numa ânsia de vida eu abria
O vôo nas asas impossíveis
do sonho.
 
Venho do século passado.
Pertenço a uma geração
ponte, entre a libertação
dos escravos e o trabalhador livre.
Entre a monarquia caída e a república
que se instalava.
 
Todo o ranço do passado era presente.
A brutalidade, a incompreensão, a ignorância, o carrancismo.
Os castigos corporais.
Nas casas. Nas escolas.
Nos quartéis e nas roças.
A criança não tinha vez,
Os adultos eram sádicos
aplicavam castigos humilhantes. 
 
Tive uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.
Os métodos de ensino eram
antiquados e aprendi as letras
em livros superados de que
ninguém mais fala.
 
Nunca os algarismos me
entraram no entendimento.
De certo pela pobreza que marcaria
Para sempre minha vida.
Precisei pouco dos números.
 
Sendo eu mais doméstica do
que intelectual,
não escrevo jamais de forma
consciente e racionada, e sim
impelida por um impulso incontrolável.
Sendo assim, tenho a
consciência de ser autêntica.
 
Nasci para escrever, mas, o meio,
o tempo, as criaturas e fatores
outros, contra-marcaram minha vida.
 
Sou mais doceira e cozinheira
Do que escritora, sendo a culinária
a mais nobre de todas as Artes:
objetiva, concreta, jamais abstrata
a que está ligada à vida e
à saúde humana.
 
Nunca recebi estímulos familiares para ser literata.
Sempre houve na família, senão uma
hostilidade, pelo menos uma reserva determinada
a essa minha tendência inata.
Talvez, por tudo isso e muito mais,
sinta dentro de mim, no fundo dos meus
reservatórios secretos, um vago desejo de analfabetismo.
Sobrevivi, me recompondo aos
bocados, à dura compreensão dos
rígidos preconceitos do passado.
 
Preconceitos de classe.
Preconceitos de cor e de família.
Preconceitos econômicos.
Férreos preconceitos sociais.
 
A escola da vida me suplementou
as deficiências da escola primária
que outras o destino não me deu.
 
Foi assim que cheguei a este livro
Sem referências a mencionar.
 
Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar.
 
Nem Menção Honrosa.
Nenhuma Láurea.
 
Apenas a autenticidade da minha
poesia arrancada aos pedaços
do fundo da minha sensibilidade,
e este anseio:
procuro superar todos os dias
Minha própria personalidade
renovada,
despedaçando dentro de mim
tudo que é velho e morto.
 
Luta, a palavra vibrante
que levanta os fracos
e determina os fortes.
 
Quem sentirá a Vida
destas páginas...
Gerações que hão de vir
de gerações que vão nascer.

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